terça-feira, 15 de março de 2011

2º Domingo da Quaresma - A


“Meu coração disse: Senhor, buscarei a vossa face.
É vossa face, Senhor, que eu procuro,
não desvieis de mim o vosso rosto!” (cf. Sl. 26, 8s).

Meus queridos irmãos,

A liturgia da Santa Igreja nos apresenta, a cada ano, no segundo domingo da Quaresma o Evangelho da Transfiguração, no início da subida de Jesus a Jerusalém, onde Ele levará a termo a vontade do Pai. Somos hoje convidados a acompanhar Jesus neste caminho. Nesta caminhada, para não desfalecermos em nossa fé, é bom termos diante dos olhos – como João, Tiago e Pedro, as privilegiadas testemunhas, a glória daquele que vai ser aniquilado, o Filho e Servo de Deus. E somos convidados a ouvir a voz que sai da nuvem: “Escutai-o”.

A primeira leitura nos apresenta a vocação de Abraão: “Sai da tua terra!” (cf. Gn 12,1). Largar o que consideramos adquirido é a condição para caminhar no rumo que Deus indica. Depois da Torre de Babel, a história humana parece ter virado em caos. Mas, com a vocação de Abraão surge um novo ponto luminoso. Inicia-se a “História da Salvação”. Cinco vezes ouve-se a palavra “bênção”. Abraão ouve o apelo: “sai da tua terra”, e a promessa: “Eu te abençoarei”. Esta é a sua única luz. Ele vai sem perguntar aonde.

A Segunda Leitura (cf. 2Tm 1,8b-10) é um breve comentário a este largar. A Segunda Leitura nos aponta a vocação santa que recebemos em Cristo, no qual resplandece a vitória sobre a morte. Essa vitória final, Pedro, Tiago e João a viram antecipadamente, e atestada por Moisés – a Lei – e Elias – os Profetas, no monte da Transfiguração. A visão desta glória é acompanhada pela voz: “Escutai-o”, o que lembra o “Ouve Israel” de Dt 6,4. É um prelúdio da ressurreição – por isso as testemunhas devem guardar o silêncio até que esta se realize. A meta da história humana é a participação da vida divina. E é esta a salvação, que só pode ser experimentada como obra de Deus. O que Deus iniciou no “evento” de Jesus – a sua vida e a fé que provocou – Ele o levará a termo no Juízo. Enquanto temos esta esperança, o mundo, alheio a ela, não pode inspirar medo, nem ao apóstolo, nem a nós.

Estimados Irmãos,

Jesus veio refazer em definitivo e ampliar ao máximo a aliança de Deus com o povo (cf. Mt 17,1-9). A grande aliança de Deus com o povo no deserto acontecera no alto do Sinai, e as tábuas da Lei eram o sinal concreto, visível e viável do pacto entre Deus e o povo eleito: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (cf. Lv 26,12). Jesus está agora caminhando para o momento decisivo da recriação da aliança entre Deus e o povo, está para fazer “a nova e eterna aliança”, como dizem as palavras da Consagração da Missa, já não mais gravada em pedra, mas escrita com seu sangue no coração de cada criatura humana.

No Sinai, o povo traiu a aliança, e preferiu um bezerro de ouro (cf. Ex 32). Agora, pouco antes do episódio da Transfiguração, o povo se divide: a maioria se nega a aceitar a pregação de Jesus; e a minoria torna-se a dividir: uns esperam para logo um reino terreno de liberdade política, liderado por Jesus; outros estão perplexos, apesar da declaração de Pedro, que professara em nome dos doze: “Tu és o Cristo, Filho do Deus vivo” (cf. Mt 16,16). Tanto a incredulidade da maioria quanto o comportamento dúbio da minoria vêm anotados por Mateus no contexto da Transfiguração. Jesus seleciona três entre os que ainda podiam crer, e que se tornariam “as colunas da Igreja” (cf. Gl 2,9), e os leva para o monte, confirma-lhes o caminho da paixão como passagem obrigatória para a ressurreição, o milagre-prova para todo o sempre da nova e eterna aliança.

Amados irmãos,

Abraão vivia em Ur dos Caldeus, aproximadamente 1800 anos antes de Cristo. Ur seria o Iraque atual. Deus o chama e ele obedece. Vamos notar que é Deus que o chama. Na história da humanidade e na história de cada um há sempre um chamado de Deus. Deus sempre precede aos nossos pensamentos e decisões. Contudo, o chamado gratuito de Deus se perde, se não houver a colaboração nossa com respeitosa resposta, pronto atendimento ao chamado do Senhor. Deus nos deu a inteligência, a vontade e os sentimentos suficientes para perceber o chamado divino e decidir aceitar ou não aceitar a sua convocação. O chamado de Deus – e está tão claro na história de Abraão – nem sempre vem com explicações ou com promessa de recompensas; pode ser até muito exigente, como o foi no caso de Abrão: teve de deixar sua terra, sua tribo, sua família; teve de partir para uma terra desconhecida. Teve de “morrer” para um passado e recomeçar tudo do nada, até mesmo sem saber o que significava esse recomeçar. Simplesmente confiou, plena e completamente, na vontade de Deus. Essa deve ser, caros amigos, a nossa atitude.

Abraão deve ser para nós o pai da confiança na misericórdia e na vontade de Deus. Confiou profundamente e com tanta unção que por um fio quase sacrificou o seu filho Isaac (cf. Gn 21,1-19). Por isso, pela sua fé radical, Deus o fez e o proclamou pai de um povo abençoado, o povo eleito.

A fé de Abraão, de sua descendência, brotam inumeráveis bênçãos, das quais a maior de todas é Jesus de Nazaré, o Filho de Deus que se encarna no seio de uma mulher abraâmica.

Estimados amigos,

Os apóstolos estavam na mesma posição de Abraão. Jesus os convoca para serem testemunhas e protagonistas da nova criação, da nova Terra Prometida, que Jesus chamou de “Reino de Deus”. Mas tudo isso foi possível porque os discípulos saíram de si mesmos, tiveram que deixar de pensar curto com a inteligência humana, mas aos olhos da fé que tudo vence. Ultrapassaram a visão humana do projeto divino. Acreditaram no desconhecido. Abraçaram a vontade de Deus. Arrancaram seus próprios interesses para carregar a cruz com Jesus e com Ele morrer no Calvário. Abraão creu no Senhor, mesmo quando o Senhor pedia a morte do seu único filho. Os apóstolos, e nós hoje, devemos crer em Jesus, mesmo vendo-o pregado na cruz. Na obediência e no serviço solidário vamos haurir as bênçãos celestiais e a filiação por parte do Senhor Deus.

Abraão e o Calvário: duas histórias que nos acompanham por dentro de todo o caminhar de nossa existência. Obedecer à vontade de Deus ou compreendê-la eis o dilema para nossa vida. A Transfiguração é escola de fé. A glória passa pelo pedágio da cruz, sem alternativa. Abraão caminhou sozinho. Os discípulos caminham com Jesus. Cristo caminha conosco. Porque Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida.

Assim, a prática cristã exige conversão permanente, para largarmos as falsas seguranças que a publicidade da sociedade consumista e as ideologias do proveito próprio e do egoísmo generalizado nos prometem, para arriscar uma nova caminhada, unida a Cristo e junto com os irmãos. Somos convidados a dar ouvidos ao Filho de Deus, como diz o Evangelho, e a receber de Cristo nossa vocação, para caminhar atrás dEle – até a glória, passando, se preciso, pela Cruz. Assim como Abraão ouviu a voz de Deus e saiu de sua cidade em busca da terra que Deus lhe prometeu, devemos, também nós, largar o que nos prende, para seguir o chamado do Senhor.

Caros irmãos,

Quando se propõe o problema da realização futura, as trevas caem sobre nós. Estamos diante de um devir que é muito mais obscuro do que se pode pensar; nossa fé vacila. Nossa fé não nos diz nada mais do que isto: para adotar as opções que nos permitam obter sucesso é necessário abranger-nos os dois extremos da história e podermos concentrar num instante o passado e o futuro. Esse é o risco que a fé comporta. O cristão que recebeu o batismo decide viver nesse risco. Sente a obscuridade que pesa sobre todos os homens na construção do presente, e não se assusta, não tem medo porque vê a meta, o Cristo transfigurado, e em Abraão o modelo a seguir.

O Santo Padre Bento XVI, em sua mensagem para a Quaresma de 2011, ao comentar o Evangelho de hoje, nos ensina (http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/internacional/5884-papa-bento-xvi-divulga-mensagem-para-a-quaresma-2011): “O Evangelho da Transfiguração do Senhor põe diante dos nossos olhos a glória de Cristo, que antecipa a ressurreição e que anuncia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, «em particular, a um alto monte» (Mt 17, 1), para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: «Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enlevo. Escutai-O» (v. 5). É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os dias, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, onde discerne o bem e o mal (cf. Hb 4, 12) e reforça a vontade de seguir o Senhor”.

Também, na vida da Comunidade eclesial, dão estes momentos de Tabor: a reunião da Assembléia, a escuta da Palavra, a celebração da Eucaristia e tantos outros. Eles reanimam e fortalecem, para que possamos descer com Cristo o monte Tabor e, tomando a sua Cruz, segui-lo pelas planícies da vida a subir com Ele a colina do Calvário, que por sua vez se há de transfigurar.

Por: Padre Wagner Augusto Portugal


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